01 novembro 2007

Quando me tornei invisível



Já não sei em que data estamos. Nesta casa não há calendários e na minha memória mistura-se tudo. As coisas antigas foram desaparecendo. E eu também fui envelhecendo, sem que ninguém se apercebesse.
Quando a família cresceu, trocaram-me de quarto. Depois, passaram-me para outro ainda menor, acompanhada das minhas netas. Agora ocupo o esconderijo, no pátio traseiro.
Prometeram-me trocar o vidro partido da janela, mas esqueceram-se. E de noite sopra por ali um ventinho gelado que aumenta as minhas dores reumáticas.
Um dia à tarde percebi que a minha voz desapareceu. Quando falo, os meus filhos e os meus netos não me respondem. Conversam, sem olhar para mim, como se eu não estivesse ali com eles.
Às vezes digo alguma coisa, por acreditar que apreciarão os meus conselhos. Mas não me olham, nem me respondem. Então, volto para o meu canto, antes de terminar a chávena de chá. E se o faço é para que compreendam que estou triste, para que venham procurar-me e pedir-me perdão… Mas ninguém vem! No dia seguinte disse-lhes:
- Quando eu morrer, então sim, vão estranhar.
E o meu neto perguntou, rindo-se muito:
- Mas tu estás viva, avozinha?
Estive três dias a chorar no meu quarto, até que uma certa manhã um dos meninos entrou, empurrando um pneu velho… Nem o "bom-dia" me deu. Foi então quando me convenci de que sou invisível.
Uma vez, os meninos vieram dizer-me que no dia seguinte iríamos todos ao campo. Fiquei muito contente. Há tanto tempo que não saía!
Fui a primeira a levantar-me. Quis arrumar as coisas com calma. Nós, os velhos, somos muito lentos, por isso aprecei-me para não os fazer esperar. Pouco tempo depois todos entravam e saíam de casa a correr, levando cestas e brinquedos para o carro.
Eu já estava pronta e muito feliz. Parei à porta e fiquei à espera.
Quando se foram embora, compreendi que não era convidada. Talvez porque não cabia no carro. Senti o meu coração apertar-se e o queixo tremer, como alguém que tinha vontade de chorar.
Eu entendo-os. São jovens. Riem, sonham, abraçam-se, beijam-se. E eu... Antes beijava as crianças, adorava tê-las nos braços, como se fossem minhas. E até cantava canções de embalar que tinha esquecido. Mas um dia…
A minha neta acabava de ter um bebé. Disse-me que não era bom que os velhos beijassem as crianças, por questões de saúde. Desde então, não me aproximei mais delas. Tenho tanto medo de contagiá-las! Bendigo-os a todos e os perdoo, porque... que culpa têm os pobres de que eu me tenha tornado invisível!? Triste é ficar velho numa família que pensa que eles nunca ficarão...
Cuide bem dos seus idosos, pois eles não são invisíveis e você, um dia, será um deles.

(Texto de Autor Desconhecido)
Carinho da Mana (BR)
(adaptado para português europeu por A.Gil)

9 Comments:

Blogger antonio ferreira said...

Obrigado Gil por colocar estas verdades



um abraço Ferreira

1/11/07 11:49  
Blogger Jelicopedres said...

Foi com alguma revolta e muito emoção que li estas verdades!
Elas, precisam ser ditas e espalhadas... para que, se transformem numa chamada de atenção para todos aqueles que, com grande insensibilidade convivem, (ou não), com aqueles que já viveram o suficiente para ver e sentir de tudo um pouco...
(sem mais palavras Gil, para o texto e a música que colocaste a acampanhar)...
Um beijinho.

1/11/07 14:32  
Anonymous Anónimo said...

Isso é verdade Gil, as vezes maltratam os velhos, mas também à muitos que tem idade e não são bons para os filhos fizeram-lhes a vida negra, um grande beijo.

1/11/07 20:37  
Blogger lami said...

È verdade, há de tudo! mas este relato é uma realidade muito frequente e muito deprimente!Tão horrível como os maus tratos é ser completamente ignorado, uma coisa sem préstimo, sem alma, sem "ser". É "não ser"!
:(((

1/11/07 22:12  
Anonymous Anónimo said...

Só posso dizer que estou muito comovida com o que li. É uma realidade que muitos dos nossos "velhos"infelizmente vivem.
Um beijo

2/11/07 22:21  
Anonymous Anónimo said...

Olá Gil
O Artigo 72º da nossa Constituição Portuguesa diz o seguinte:
" As pessoas idosas têm direito à segurança económica e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e superem o isolamento ou a marginalização social"
Que me dizes a isto, amigo? bjos
silvana sapage

6/11/07 10:06  
Anonymous Anónimo said...

Olá Gil:
No comments, é para pensar no que poderemos nós fazer por esta realidade dura, e engolir em sêco.
Abraço Bia dos Santos

6/11/07 12:02  
Anonymous Anónimo said...

Sem palavras !!! Quando acabei de ler tudo isto.
Pensei como esta velhota fala a verdade, é o pão nosso de cada dia os jovem não pensarem que também lá vão chegar e ter a coragem de abandonar quem por eles sofreu para que nada lhe falta-se !
Todos sabemos que à mães e mãezinhas, mas esta história cada vez se está a ouvir mais dos filhos não querem saber dos seus idosos !!!

6/11/07 15:33  
Blogger Carolina said...

Bem verídico, bem actual!

6/11/07 17:24  

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