26 outubro 2008

Executiva no Céu

Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou e cambaleou. Deu um gemido e apagou-se. Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso portal. Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma multidão. Toda a gente vestia cândidos camisolões e passeava despreocupada.
Sem entender bem o que estava a acontecer, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes:
- Enfermeiro, preciso voltar já para o meu escritório, onde tenho uma reunião importantíssima. Acho que estou aqui por engano: o meu sistema de saúde é classe A, e isto aqui está a parecer mais um pronto-socorro. Onde é que estamos?
- No céu.
- No céu?
- É, tipo assim, o céu...
- Aquele com anjinhos voando e coisas do género?
- Claro. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente.
Apesar das óbvias evidências (nenhuma poluição, toda a gente a sorrir, ninguém a usar telemóveis), a executiva bem-sucedida custou um pouco a admitir que houvesse mesmo morrido. Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela situação era inaceitável.
- Veja - ponderou - daqui a uma semana recebo o meu bónus anual - e estou fortemente posicionada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa.
Foi então que o interlocutor sugeriu:
- Talvez seja melhor você conversar com Pedro, o síndico.
- É? E como é que marco uma audiência? Ele tem secretária?
- Não, não... Basta estalar os dedos e ele aparece.
- Assim? (...)
- Diga lá?
A executiva bem-sucedida quase cai da nuvem. Na sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro.
- São Pedro!
Mas ela tinha feito um curso intensivo de aproximação para situações inesperadas e reagiu depressa:
- Bom dia. Muito prazer. Que belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e...
- Executiva... Que palavra estranha. De que século veio?
- Do 21. O distinto cavalheiro não me vai dizer que não conhece o termo 'executiva'?
- Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo.
Foi então que a executiva bem-sucedida teve uma inspiração. A máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero é esquerda em técnicas modernas de gestão empresarial. Logo, com o seu brilhante currículo tecnocrático, ela poderia rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, "celestial", naquela organização.
- Sabe, meu caro Pedro, se me permite, gostaria de lhe fazer uma proposta. Basta olhar para este povo todo, conversando e passeando à toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para fazer um upgrade na produtividade sistémica.
- Acha mesmo?
- Pode acreditar, porque tenho PhD em reengenharia. Por exemplo, não vejo ninguém a usar crachá. Como é que a gente sabe quem é quem aqui, e quem faz o quê?
- Ah, não sabemos.
- Headcount, então, não deve constar em nenhum versículo, pois não?
- Hã?
- Entendeu o que eu disse? Sem controle, há dispersão. E dispersão gera desmotivação. Com o tempo, isto aqui vai acabar por virar uma anarquia. Mas nós dois podemos consertar tudo isto implementando um simples programa de metas individuais e avaliação permanente.
- Que interessante...
- Depois, mais lá para o médio prazo, assim que os fundamentos estiverem sólidos e o pessoal começar a reclamar da pressão e a ficar stressado, a gente acalma-os com um sistema de stock option, com uma campanha motivacional impactante, tipo: 'O melhor céu da América Latina'.
- Fantástico!
- É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização, de um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver. Contratavamos uma consultoria especializada para nos ajudar a definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do Grande Accionista... Ele existe, não é?
- Sobre todas as coisas.
- Óptimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing mix e investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto valor agregado. O mercado telestérico, por exemplo, parece-me extremamente atractivo.
- Incrível!
- É óbvio que, para conseguir tudo isto, nós dois teremos que nomear um Conselho de Administração de altíssimo nível. Com um pacote de remunerações atraente, é claro, coisa assim de um salário de seis dígitos e todos os fringe benefits e mordomias da praxe. Porque, agora falando de colega para colega, tenho a certeza de que vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar em um turnaround radical.
- Impressionante!
- Isso significa que podemos partir para a implementação?
- Não. Significa que você terá um futuro brilhante se for trabalhar com o nosso concorrente. Porque me acaba de descrever, exactamente, como funciona o inferno...
(recebido da nossa Amiga Alzira e rectificado para português europeu)

20 outubro 2008

IMAGINEM - MÁRIO CRESPO

Imaginem que todos os gestores públicos das setenta e sete empresas do Estado decidiam voluntariamente baixar os seus vencimentos e prémios em dez por cento. Imaginem que decidiam fazer isso independentemente dos resultados. Se os resultados fossem bons as reduções contribuíam para a produtividade. Se fossem maus ajudavam em muito na recuperação.
Imaginem que os gestores públicos optavam por carros dez por cento mais baratos e que reduziam as suas dotações de combustível em dez por cento.
Imaginem que as suas despesas de representação diminuíam dez por cento também. Que retiravam dez por cento ao que debitam regularmente nos cartões de crédito das empresas. Imaginem ainda que os carros pagos pelo Estado para funções do Estado tinham ESTADO escrito na porta. Imaginem que só eram usados em funções do Estado.
Imaginem que dispensavam dez por cento dos assessores e consultores e passavam a utilizar a prata da casa para o serviço público. Imaginem que gastavam dez por cento menos em pacotes de rescisão para quem trabalha e não se quer reformar. Imaginem que os gestores públicos do passado, que são os pensionistas milionários do presente, se inspiravam nisto e aceitavam uma redução de dez por cento nas suas pensões. Em todas as suas pensões. Eles acumulam várias. Não era nada de muito dramático. Ainda ficavam, todos, muito acima dos mil contos por mês.
Imaginem que o faziam, por ética ou por vergonha. Imaginem que o faziam por consciência. Imaginem o efeito que isto teria no défice das contas públicas. Imaginem os postos de trabalho que se mantinham e os que se criavam. Imaginem os lugares a aumentar nas faculdades, nas escolas, nas creches e nos lares. Imaginem este dinheiro a ser usado em tribunais para reduzir dez por cento o tempo de espera por uma sentença. Ou no posto de saúde para esperarmos menos dez por cento do tempo por uma consulta ou por uma operação às cataratas.
Imaginem remédios dez por cento mais baratos. Imaginem dentistas incluídos no serviço nacional de saúde. Imaginem a segurança que os municípios podiam comprar com esses dinheiros. Imaginem uma Polícia dez por cento mais bem paga, dez por cento mais bem equipada e mais motivada. Imaginem as pensões que se podiam actualizar. Imaginem todo esse dinheiro bem gerido. Imaginem IRC, IRS e IVA a descerem dez por cento também e a economia a soltar-se à velocidade de mais dez por cento em fábricas, lojas, ateliers, teatros, cinemas, estúdios, cafés, restaurantes e jardins.
Imaginem que o inédito acto de gestão de Fernando Pinto, da TAP, de baixar dez por cento as remunerações do seu Conselho de Administração nesta altura de crise na TAP, no país e no Mundo é seguido pelas outras setenta e sete empresas públicas em Portugal. Imaginem que a histórica decisão de Fernando Pinto de reduzir em dez por cento os prémios de gestão, independentemente dos resultados serem bons ou maus, é seguida pelas outras empresas públicas.
Imaginem que é seguida por aquelas que distribuem prémios quando dão prejuízo. Imaginem que país podíamos ser se o fizéssemos.Imaginem que país seremos se não o fizermos.
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