18 janeiro 2008

"A DEVIDA COMÉDIA" - Miguel Carvalho


CRIANCINHAS

A criancinha quer Playstation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.
Desperta.
É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já rescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha? Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos.

Artigo publicado na revista VISÂO online

13 janeiro 2008

2007... Visto pelos fotógrafos da Reuters



Suba o som do seu PC, clique na imagem acima e deixe continuar. Algumas fotos podem causar constrangimento a pessoas mais sensíveis.

06 janeiro 2008

O rasto do ano mais triste


No final dos anos fazem-se balanços e formulam-se votos. Vou por aí, recordando em sinopse paradigmática, algo do que fica do ano mais triste.
Sócrates rima com cortes. Fechou mais de dois milhares de escolas. Congelou salários, despediu professores, abandonou metade das crianças deficientes, promoveu a indisciplina e o facilitismo, afogou-nos em papéis e burocracia, recuperou o medo, desprezou a lei. E no fim foi ao Parlamento cantar vitória. Onde o Procurador viu indisciplina preocupante, o governo leu tranquilidade e normalidade. Quando o Provedor denunciou atropelos, o governo passou de fininho e foi em frente. Quando nos tribunais o Ministério da Educação foi condenado, os mandantes prosseguiram incólumes e sem sanções, nem politicas, sequer.
As escolas continuam genericamente inóspitas, frias, desconfortáveis, sem recursos, sem dinheiro. A destituição do poder dos professores sofre agora novo assalto, com a alteração do modelo de gestão das escolas, que trará ao apogeu a divisão da classe. Menos pão, menos saber e cada vez mais circo, é o mote. Já tivemos o concurso do melhor professor, com gala no fim. Começa agora a série dos manuais escolares, a 10 mil euros por título. Bingo! Quando os papalvos que suportam o cortejo acordarem, já os figurantes estarão divididos pelos gabinetes da "Europa mais forte" ou sentados nas cadeiras dos conselhos de administração, que os esperam. E os professores que aguentarem terão pela frente o trabalho de recolher os cacos.
Quando o dinheiro é o primado, importa olhar, ainda que meteoricamente, para o que se retira do Orçamento Geral do Estado para 2008. Estão aí fixados 2,1 por cento para aumentar os funcionários públicos, face a uma inflação esperada, que todas as previsões oficiais (nossas e da Europa) aceitam ser superior. Este número, para além de parco, deve ser cruzado com duas realidades indesmentíveis: desde 2000, os funcionários públicos perderam, pelo menos, 10 por cento do seu poder de compra; por outro lado, o valor previsto para "remunerações certas e permanentes" volta a descer relativamente a 2007 (a descida da governação de Sócrates ronda os 500 milhões de euros). Significa isto, obviamente, que os despedimentos, as reformas impostas e as mobilidades especiais baterão à porta de muitos. E, ao lado, que podemos ver? Que estão inscritos 1200 milhões de euros para pagar aquisições de pareceres, estudos e projectos, em regime de outsorcing. E the last but not the least, sabem o que acontece às verbas previstas para a defesa? Crescem 8,5 por cento! E note-se que, enquanto na OCDE a média desses gastos representa 1,7 por cento da riqueza produzida, em Portugal significa... 2,3 por cento dessa riqueza. Sinais dos tempos, marcas de despudor.
Seria cínico se vos desejasse o que não vão ter: bom ano 2008! As contas só podem ser acertadas em 2009. O meu voto é o de Henri Turot: resiste muito, obedece pouco!

Crónica de Santana Castilho na E-Escola Informação
(imagem: Salvador Dali)
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